Por Silverio Karwowski*
A atuação clínica ainda é aquela de maior identificação dos estudantes de psicologia e aquela que a maioria dos profissionais irá tentar após terminar sua graduação. No entanto, pelo menos 80% desses profissionais desistirão no segundo ano, ou tornarão a atuação clínica um hobby, adotando outro tipo de atividade que lhe dê a maior parte da renda. É assim que a prática clínica acaba se tornando "um bico", deixando de receber maior atenção e os maiores cuidados do clínico e, dessa maneira, confirmando a impressão geral a respeito da carreira clínica: que é impossível se viver de consultório em psicologia.
Um provérbio chinês atribuído a Confúcio afirma “escolha um trabalho que você ame e você nunca mais terá que trabalhar um dia na sua vida”. Gostar daquilo que faz é um dos primeiros requisitos para qualquer pessoa permanecer em um trabalho, profissão ou ocupação, mas viver bem daquilo que gosta de fazer é resultado de uma conjunção de fatores que precisam ser bem articulados e muito bem cuidados.
Exercer a prática clínica sem dedicar atenção aos fatores de sustentação da profissão é como querer andar em um veículo, sem se preocupar com sua manutenção. Se você não trocar pastilhas de freio, óleo do motor, verificar o desgaste dos pneus e a água do radiador, sem falar na manutenção preventiva do motor, em algum momento seu veículo o deixará na mão. Da mesma forma é a profissão do clínico: é preciso muita atenção aos elementos responsáveis pelo crescimento e desenvolvimento profissional, para que a profissão não se mostre insatisfatória e sem oferecer o que se precisa para viver dela.
A carreira do psicólogo clínico, diferente de outras áreas de atuação do psicólogo, é um processo relativamente demorado que demandará investimento de tempo e de formação. E, ao contrário do que se imagina, o clínico também precisa fazer planejamento, ter dedicação no projeto e se aperfeiçoar ao máximo para garantir o sucesso do seu consultório. Fazer a gestão da carreira deve ser prioridade para todo psicólogo que pretende viver exclusivamente da clínica. Psicólogos que gerenciam sua carreira tem confiança em seu desempenho, sabem o momento certo de tomar decisões estratégicas seja em relação ao mercado, a questões técnicas ou a procedimentos legais.
Gostar daquilo que faz é um dos primeiros requisitos para qualquer pessoa permanecer em um trabalho, profissão ou ocupação, mas viver bem daquilo que gosta de fazer é resultado de uma conjunção de fatores que precisam ser bem articulados e muito bem cuidados.
Nesse post irei abordar um dos procedimentos considerados fundamentais para que a clínica dê certo, ou seja, o psicólogo clínico tenha pacientes, rendimento suficiente advindo desses pacientes e também consiga viver bem de sua renda. Farei considerações sobre os objetivos do psicólogo clínico, examinando o que é o objetivo de sucesso, as metas a serem alcançadas e o estabelecimento dos prazos para se atingir as metas.
1 - O que é e como ser bem-sucedido
O que almeja o psicólogo clínico para sua carreira? O que estabelece para si como objetivos profissionais e pessoais? Na maioria das vezes, quando perguntamos a um clínico em início de carreira sobre os seus objetivos profissionais, os objetivos mais descritos são “ter um bom faturamento”, “trabalhar pouco por semana”, “ser um profissional bem-sucedido” ou ainda “ser um profissional respeitado”.
Embora essas respostas sejam muito importantes para quem responde, elas são bastante vagas e muitas vezes abrigam uma série de outros objetivos ou passos que o clínico precisa atingir para que esses objetivos possam ser de fato atingidos. Perceba, por exemplo, que a noção de sucesso atualmente sustentada e incentivada pela sociedade passa necessariamente pela obtenção de fama, poder e dinheiro. E a meta é inexistente, pois entende-se que quanto mais a pessoa obtém dinheiro, mais será famosa e quanto mais famosa, mais poder. Ou ainda uma relação distinta de que uma coisa pode levar à outra, como por exemplo, a fama trazendo os outros dois elementos. O que importa mesmo é que esse critério de sucesso está associado com a ideia de felicidade. Para o senso comum, basta que esses itens sejam obtidos para que a pessoa seja feliz. Os bons clínicos sabem que esse princípio e essa correlação são irreais e que a obtenção de felicidade passa por caminhos distintos...
Então, se isso é verdadeiro para nossos clientes, o clínico não poderá, ele mesmo cair na armadilha da noção de sucesso vigente. Ao contrário, terá que examinar profundamente onde quer chegar e definir o quanto os objetivos pretendidos se articulam efetivamente com seu projeto de vida, aspecto não fácil de se descobrir, mas que o clínico deverá o tempo todo examinar em sua psicoterapia pessoal. A falta de clareza sobre os objetivos profissionais pode, na maioria das vezes, levar à ausência de foco e impossibilitar a definição das estratégias necessárias para se chegar onde se pretende. É possível e necessário que o clínico aponte o que pretende para si mesmo ao longo do tempo, afim de identificar o que precisa fazer para atingir o estipulado.
Para isso, precisa escrever (isso mesmo, colocar no papel! Isso lhe dará melhores condições de análise de sua descrição) o que entende por um psicólogo clínico bem-sucedido, de preferência com um bom modelo em mente. Normalmente esses modelos são ex-professores ou psicoterapeutas que você já conhece e que são: respeitados pelas pessoas que falam em clínica, ou seja, há um consenso de que é um bom clínico; reconhecidos pelo domínio do conhecimento, seja no âmbito teórico, seja no âmbito prático; consideradas pessoas éticas, devido ao comportamento que exibem em diversas circunstâncias; comprometidas com a profissão de clínico devido à manutenção do foco na carreira e na sua defesa; consideradas pessoas que tiram seu faturamento da atividade clínica, o que se traduz como não precisando recorrer a outras atividades para manter sua renda.
Percebe-se, pela noção acima, que na verdade o que se considera fama, no senso comum, nada mais é que a boa reputação do psicoterapeuta, ou seja, como essa pessoa é efetivamente percebida no local em que atua profissionalmente. Dinheiro não é fortuna, mas um faturamento efetivo e suficiente para uma vida confortável, que permita acesso a moradia digna, transporte de qualidade, alimentação saudável e lazer regular. Nada que qualquer pessoa normalmente não queira obter em sua vida através de sua profissão, o que obviamente não significa necessariamente um acúmulo de capital para enriquecimento.
2 - A definição dos objetivos
A definição de objetivos deve se dar nos âmbitos pessoal e profissional, embora se possa estratificar bem mais essas categorias, estabelecendo-se objetivos financeiros e econômicos, intelectuais, sociais e tantos mais quanto se queira. Para uma simplificação que pede esse post, me referirei apenas aos âmbitos pessoal e profissional. No âmbito pessoal cada um identifica para si seus objetivos e suas metas. A variação naquilo que as pessoas escolhem como objetivos pessoais é tão grande que seria de fato impossível eu lista-los aqui, sem deixar algum a descoberto. Mas apenas a título de exemplo e para distinguir os objetivos pessoais dos profissionais, vamos considerar que o psicólogo clínico iniciante queira, a curto prazo, sair da casa dos pais. A médio prazo, se casar e alongo prazo, comprar sua própria moradia. Esses são objetivos pessoais que provavelmente deverão estar bem amparados pelo estabelecimento de objetivos profissionais. O mais importante é que se faça uma articulação realista entre os dois, levando em consideração por exemplo, que pessoas as quais a família não é abastada, que não pretendem trabalhar muito, que dependem ainda dos pais, que não possuem uma fonte de renda bem estabelecida, dificilmente conseguirão o primeiro objetivo, e por conseguinte o terceiro.
Um aspecto quase sempre negligenciado pelos orientadores de carreira diz respeito à distinção entre os objetivos pessoais e as imposições sociais. Na era da felicidade e da ostentação, os objetivos estabelecidos são quase sempre vida confortável, viagens, festas e demonstrações de felicidade nas redes sociais. Como o espaço desse post não se destina a um exame mais aprofundado dessa distinção, gostaria apenas de chamar a atenção para o clínico não se deixar confundir por determinações sociais, fazendo assim com que seus objetivos profissionais sejam pouco realistas ou inadequados para projetos de fazer diferença nos âmbitos sociais ou humanos. Para que não se caia em armadilhas dos determinantes sociais, os objetivos e metas precisam ser bastante realistas e para isso, o auxílio de outros profissionais como professores, outros psicoterapeutas, os supervisores e o contínuo exame na psicoterapia pessoal serão fundamentais para a delimitação e checagem dos objetivos pessoais.
"Desenvolvimento de competências e habilidades como clínico, é um fator que terá que ser adotado e perseguido com obstinação e perseverança, pois será uma das condições mais relevantes para impulsionar outros objetivos profissionais e pessoais do clínico"
Como objetivos profissionais, pode-se estabelecer, por exemplo, viver apenas da clínica, ser reconhecido cientificamente no meio acadêmico, ser reconhecido como profissional competente na cidade em que reside, ser referência na especialidade X, e assim por diante. Da mesma maneira que afirmei no parágrafo anterior, o auxílio de terceiros (cursos, outros profissionais, psicoterapia pessoal, p. ex.) como recursos de apoio serão muito importantes para o estabelecimento e sustentação dos objetivos profissionais.
A competência técnica, desenvolvimento de competências e habilidades como clínico, é um fator que terá que ser adotado e perseguido com obstinação e perseverança, pois será uma das condições mais relevantes para impulsionar outros processos constitutivos da carreira de clínico em psicologia. Dada sua relevância, tratarei desse quesito separadamente e de forma mais aprofundada em outro post.
A distinção entre objetivos e metas
Para grande parte das pessoas não é muito fácil fazer a distinção entre objetivos e metas, e muitas vezes acaba por se tomar um pelo outro. Por isso, farei uma distinção simples aqui: o objetivo é a descrição daquilo que se pretende alcançar, a meta é identificação em termos quantitativos num período de tempo. De modo que um objetivo profissional para o clínico pode ser por exemplo “ter meu próprio consultório” e a meta é “em três anos”. Um outro pode ser “trabalhar menos diariamente” e a meta é “atender 04 pacientes por dia, daqui a cinco anos”.
3 - Os prazos
Como cada um define para si seus objetivos pessoais, tratarei aqui dos objetivos profissionais e os prazos para sua consecução.
Os prazos em planejamento de carreira sempre dizem respeito a curto, médio e longo prazo. Na maioria das vezes, considera-se o curto prazo como um ano, o médio prazo como três anos e o longo prazo como cinco ou seis anos. Mas você também encontrará pessoas que fazem a relação como sendo de cinco anos para o curto, dez anos para o médio e quinze anos para o longo. É aconselhável que você pense inicialmente seus objetivos dentro da primeira faixa de tempo e, posteriormente, faça um desenho mais longo, na faixa de tempo de 05 a 15 anos.
Como exemplo, dentro da faixa de tempo de um a 05 anos, se você está no último ano de faculdade, seu objetivo a curto prazo poderá ser terminar a faculdade; a médio prazo, iniciar a formação na abordagem que você escolheu e a longo prazo, estar em consultório próprio.
O mais importante é que você defina quais são esses objetivos e as metas, e que os mesmos sejam realistas, ou seja, efetivamente possíveis de serem executados dentro do prazo que você definiu para si. De nada adianta pretender, em um ano, estar no consultório próprio, atendendo seis pacientes por dia a um valor médio de sessão de R$150,00 se você ainda está no último ano de faculdade e seus recursos pessoais e profissionais indicam que ainda há muito a desenvolver.
Lembro-me de pelo menos um ex-aluno que pretendia ser coordenador de grupo-de-estudo e para isso queria minha autorização ou orientação, mas, no entanto, não conseguia articular de forma suficiente seus pensamentos, pouco tempo dedicava à leitura em profundidade e também não conseguia aglutinar as pessoas em volta de um propósito. Na verdade, não ter essas características desenvolvidas não é nenhum pecado. O problema é não ter consciência da necessidade de desenvolvê-las de maneira dedicada e constante, assim como, no caso de se ter consciência, não se empreender nenhum movimento para o desenvolvimento dessas habilidades.
Uma boa forma de começar a estabelecer seus objetivos profissionais pode ser, por exemplo: tornar-se conhecido como especialista no problema/patologia X nos próximos 02 anos; ter 04 turnos (de uma semana) do consultório com horários preenchidos nos próximos 03 anos; realizar um curso de formação/especialização da minha abordagem nos próximos dois anos; e assim por diante. Coloque os prazos que serão de fato possíveis para você executar e, para cada um desses objetivos estabelecidos, elabore um plano de ação: descreva minuciosamente o passo-a-passo que você precisará seguir para atingir cada um dos objetivos propostos. Veja em meu outro post as atitudes necessárias para realizar um bom planejamento.
Através desse post, quis demonstrar aos clínicos que, diferentemente do que objetivamente se pode supor, o estabelecimento de onde se quer chegar pessoal e profissionalmente está intimamente relacionado com a compreensão realista do que se deseja, com a distinção entre esses desejos e as imposições sociais, com o estabelecimento de metas e prazos que sejam possíveis de serem cumpridos e, se necessário, com a obtenção de orientações de outros profissionais nesse quesito.
No próximo post
No próximo post tratarei da adequação vocacional do clínico e de sua competência técnica. Na verdade, de como o clínico pode saber se tem as características necessárias para o exercício da clínica, se não tem, como desenvolve-los, e também como se tornar mais competente para o exercício profissional.
*Silverio Karwowski é psicólogo e licenciado em psicologia pela UFU - Universidade Federal de Uberlândia, mestre em psicologia clínica pela PUC-Campinas, gestalterapeuta pelo Instituto Sedes Sapientiae de São Paulo, e diretor do IGC - Instituto Gestalt do Ceará.
VEJA AQUI OUTROS POSTS SOBRE A FORMAÇÃO E PRÁTICA EM PSICOLOGIA
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