Por Caio Monteiro Silva*
"...vivemos em um mundo e não há outro nesse momento disponível para que vivamos. Temos de lidar, então, com este mesmo que a mim me é revelado."
Não é preciso ser especialista para saber que o mundo atual é bem diferente daquele de outras épocas. A cada instante referências antes consolidadas a respeito de nossa forma de estar no mundo são fragilizadas por um novo conjunto de assertivas que coloca aqueles antigos caminhos em xeque.
Ao longo de um ano é possível ver os efeitos apontados, muitas vezes em direção opostas, por uma miríade de estudos relacionados a um mesmo tema. Esses dilemas estão presentes no nosso cotidiano desde a forma pela qual devemos nos comportar em relação aos filhos, a nós mesmos, ao trabalho e em qualquer relação significativa até o cafezinho do fim da tarde, ou o ovo do café da manhã.
Escrevo esse pequeno ensaio no dia 13 de Fevereiro de 2019. É uma quarta-feira, confesso não ter lido ainda os artigos mais atuais a respeito de boa parte daquilo que preciso fazer ao longo do dia. Café, hoje, faz bem ou faz mal? Não sei dizer.
A Psicologia e a Instabilidade do Mundo
O leitor pode estar perguntando o que isso tem a ver com psicologia e tem toda razão em fazê-lo. Alguns pensadores nos ensinaram que nossa vida não está separada do mundo em que vivemos, embora eu tenha uma existência própria e o mundo a sua, e que se possa julgar independentes. Ainda assim, vivemos em um mundo e não há outro nesse momento disponível para que vivamos. Temos de lidar, então, com este mesmo que a mim me é revelado. Assim, Martin Heidegger em seus Seminários de Zolikon[i] já convocava os psiquiatras suíços a conhecerem e pensarem sobre o mundo. Os psiquiatras precisam conhecer o mundo, assim como hoje, fazendo as devidas considerações históricas, os psicólogos precisam conhecer o mundo para conhecerem o sofrimento pertinente a esse mundo que é partilhado, mas absolutamente vivenciado de forma singular por cada uma das pessoas.
Fritz Perls, um dos grandes expoentes da Gestalt-Terapia, já em sua obra seminal – Gestalt-Terapia[ii] -, declarava também a existência de uma antropologia das neuroses. Ora, dizer de uma antropologia das neuroses é dizer que a neurose se estabelece na lida das pessoas com sua cultura.
Nesse sentido, conhecer de forma rigorosa e profunda o tempo em que vivemos é condição para o bom exercício da prática psicoterapêutica e da lida por parte do psicólogo com os desafios do sofrimento psíquico contemporâneo. Que efeitos tem, então, sobre a subjetividade um mundo em constante transformação? Um mundo instável?
É preciso conhecer o tempo em que vivemos
Ora, novamente não é preciso ser especialista para nos darmos conta de nossa experiência cotidiana mais imediata. Esta experiência está relacionada a vida que muitos de nós estamos passando com reiteradas exigências e contínuas cobranças por resultados e desempenho. A ansiedade é em grande parte sentimento comum.
...a ideia de uma verdade como ancoragem do mundo social que pudesse me servir de guia, tal qual um farol ou estaleiro serve de referência às embarcações, se esmaece e fragiliza.
Com a velocidade das transformações de nosso mundo contemporâneo a ideia de uma verdade como ancoragem do mundo social que pudesse me servir de guia, tal qual um farol ou estaleiro serve de referência às embarcações, se esmaece e fragiliza. A constante superação de um conhecimento sobre o mundo por outro, mais novo, mais eficiente, desestabiliza nossa relação de segurança com o próprio mundo. Vivemos em um mundo onde as coisas nem bem chegam a ser e já novamente se transformam e modificam. Desta forma, para nós de uma maneira geral, ainda que não esteja explicitamente exposta em nossas consciências nossas perguntas não estão mais vinculadas apenas ao “o que fazer” e sim ao “como fazer o que se tem pra fazer da forma mais eficiente possível”.
Nosso mundo diverso e aparentemente livre nos libertou das amarras das poucas opções e mesmos caminhos, entretanto, nos conduziu a obrigação da reinvenção diária, da saída de estados de menos potência para estados de mais potência sem nos permitir perguntar um simples “para que?”. A performance parece ser uma questão fundamental de nosso tempo estando a ela relacionada boa parte de intensos sofrimentos psíquicos, é na lida com um mundo que me obriga um incremento de performance constante (Como ser um profissional eficiente? Como ser um pai/mãe melhor? Como ser um melhor amigo? Como ser um estudante melhor?) que singularizam-se os sofrimentos.
Assim, é possível observar movimentos que se destacam por tentar balancear essa difícil equação de permanente aumento de performance. Nesse contexto podemos elencar alguns tipos de sofrimento comuns e intensos.
Sofrimentos advindos da necessidade de performance
As crises de ansiedade sejam em suas formas pontuais ou já cronificadas (Transtorno de Ansiedade Generalizada – TAG) que se expressam muitas vezes como um medo de não dar conta e de não conseguir; os pensamentos depreciativos sobre si são também presentes (“sou fraco”, “sou burro”, “sou incompetente”, “isso não é pra mim”); as compulsões, sejam elas vinculadas a uso de substâncias psicoativas (muitas vezes estão em função da manutenção da performance), ou aos mais contemporâneos casos de binge (associação ao não controle de um impulso sobre a comida relacionado ao Transtorno da Compulsão Alimentar Periódica - TCAP ).
Os psicólogos precisam conhecer o mundo, é este conhecimento que lhes permitirá uma atuação compreensiva diante dos fenômenos, bem como uma leitura adequada dos movimentos de resistência pelos quais passam alguns pacientes.
Entretanto, outros tipos de compulsão mais adaptativas ao nosso tempo e que geram imenso sofrimento psíquico podem passar despercebidas por muitas vezes estarem relacionadas a conjunturas de prestígio social. Os conhecidos Workaholics que tem uma relação de dependência com seu trabalho atingem níveis altos de sofrimento e muitas vezes são invisibilizados pelas circunstâncias sociais que premiam generosamente determinadas atitudes, ainda que possam ser responsáveis por pesadas cargas e sofrimentos.
Voltamos, portanto, ao início de nosso ensaio. Os psicólogos precisam conhecer o mundo, é este conhecimento que lhes permitirá uma atuação compreensiva diante dos fenômenos, bem como uma leitura adequada dos movimentos de resistência pelos quais passam alguns pacientes. Os movimentos de resistência as vezes podem ser traduzidos por seus hábitos cristalizados em esquemas para lidar com este mundo que lhes exigiu e apresentou uma ideia do que é ser feliz, do que é ser bem sucedido. Uma das questões principais no entanto é que este mesmo mundo quando achamos as respostas modifica quase que completamente as perguntas. O mundo vem trocando incessantemente a maior parte das regras do jogo. O mundo contemporâneo reinicia o jogo da vida modificando o nível de dificuldade, exige dos jogadores (nós) que desempenhemos tudo de forma mais eficiente. Há apenas uma única coisa que não se muda nesse jogo: não podemos abandonar o próprio jogo.
VEJA AQUI NOSSO OUTRO POST ABORDANDO O WORKSHOP COMO MODO DE PREPARAÇÃO DO PSICOTERAPEUTA
Caio Monteiro Silva
é Psicólogo e Psicoterapeuta, Doutorando e Mestre em Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC), Psicoterapeuta e Professor do Instituto Gestalt do Ceará (IGC), Professor de Psicologia na Faculdade Ari de Sá (FAS) e Coordenador do Projeto Integrador também da FAS. Contato: caio.monteiro.silva.1988@gmail.com.
[i] Heidegger, M. Seminários de Zollikon. São Paulo: EDUC; Petrópolis, RJ: Vozes, 2001.
[ii] PERLS, Frederick.; HEFFERLINE, R. F.; GOODMAN, P. Gestalt-Terapia. São Paulo: Summus, 1951/1997.
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