As questões quanto ao que chamamos de saúde mental sempre muito me instigaram. Não por acaso, decidi debruçar-me sobre o tema para estudar mais a fundo as inúmeras nuances que desse campo fazem parte e desenvolver minha tese de doutorado (HOLANDA, 2020). Aqui, gostaria de pontuar alguns elementos quanto ao tema, por tamanha que considero ser a necessidade de uma postura crítica quando falamos (de uma forma, às vezes, tão naturalizada) sobre saúde mental.
Em primeiro lugar, pontuo a necessidade de nossa disposição às alteridades. No encontro com o outro, estaremos sempre nos deparando com o novo, entrando em contato com diferentes percepções de mundo de pessoas que nunca se encontram estáticas em seus processos de formação e apresentação, e sim em contínuo movimento, como algo intrínseco às suas existências. Caso já venhamos carregados de a prioris e entendimentos rígidos sobre do que se trata saúde e doença, encaixaremos o outro em padrões e impossibilitaremos a expressão genuína da pessoa em sua totalidade.
"...ao falarmos de saúde mental, devemos ter claro que falamos de vida, e não, meramente, de doenças e diagnósticos. E mais: falar de adoecimentos psicológicos ou psiquiátricos é falar de experiências de sofrimento."
O Campo de vida da pessoa
Um segundo ponto se trata de sempre olharmos de forma expandida para o campo de vida da pessoa, principalmente quando essa nos vem falar do sofrimento ocasionado por seus adoecimentos. Tanto no desenvolvimento da tese (a partir das narrativas de história de vida das pessoas entrevistadas) como em minha prática clínica cotidiana, percebo que, no encontro com o outro, vislumbro as tensões de suas narrativas e as várias experiências vividas que, por vezes, podem revelar situações de violência nas relações e experiências de opressão, de desamparo, desrespeito às diferenças e imposições e exigências de tão variadas naturezas, desconsiderando os limites e possibilidades de cada pessoa.
Algo que discuto, portanto, trata-se de como podemos entender que as vivências de violência, em suas várias faces e modos, podem ser quem gera as vivências de sofrimento e adoecimento. Com isso, ao discutirmos sobre saúde mental, patologias e adoecimentos falamos do campo de vida de cada um, de suas relações, das formas de compreensão do mundo e dos modos de vida. Tal postura crítica se faz importante por vivermos inseridos em práticas que tomam como modelo hegemônico o olhar biomédico, que em vez de contemplar o sofrimento humano em totalidade, tenta explica-lo pelas desordens biológicas e tentativas de restabelecimento de um “bom funcionamento” do organismo. Aí que mora nossa principal questão:
Nenhuma pessoa em situação de violência se vê na liberdade de criar, de se reinventar e ao seu mundo, vendo-se limitada e acorrentada por imposições repassadas, em grande parte, por suas relações interpessoais. Portanto, vivendo em extrema opressão e violência, entravam em sofrimento maior, adoecendo seus corpos e suas existências. Porém, em vez de terem uma compreensão ampla dos processos que vivenciavam e das inúmeras limitações impostas em ao longo de sua história, recebiam como principal forma de auxílio os olhares médicos, que passaram a se tornar hegemônicos em nossas sociedades, e que as encaixava em diagnósticos e as medicava, como forma principal de cuidado. Isto tudo reforçado pelos múltiplos atores de cada uma de suas vidas, que também entendiam a necessidade de tal cuidado (HOLANDA, 2020, p. 188).
"Nenhuma pessoa em situação de violência se vê na liberdade de criar, de se reinventar e ao seu mundo, vendo-se limitada e acorrentada por imposições repassadas, em grande parte, por suas relações interpessoais."
A partir disto, como terceiro e último ponto, discuto que para termos uma postura crítica quanto às discussões em saúde mental, devemos vislumbrar a vida como possibilidade. Mesmo que as pessoas passem, em tantos momentos, por situações de violências, que tenham seus sofrimentos rotulados como adoecimentos e tratados como desordens biológicas, estas nunca perdem a potência de falar por si, de compreender seus sofrimentos e as situações que os envolvem e de fazerem, de forma autônoma, uma diagnóstica de si. Quando oferecidas de um espaço acolhedor, compreensivo (e não explicativo) e sob um olhar amplo sobre as múltiplas vivências que a vida de cada um abriga, as pessoas falam sobre o que sentem, sobre o que pensam sobre suas formas de sofrimento e quais são os cuidados que consideram importantes em suas vidas, assim como os projetos que fazem mediante isto. Isto é construir uma diagnóstica de si, papel fundamental para a uma prática crítica em saúde mental.
Somos integrados
Portanto, devemos lembrar, a todo instante, de que somos um todo integrado, que funciona conjuntamente e se metamorfoseia. A discussão se algo é biológico, ou psicológico, ou social, ou cultural, uma parte excluindo a outra, é uma discussão que percebo, cada vez mais, perder força e sentido em nossas realidades. A separação dos saberes parte muito mais de uma necessidade humana, de explicar didaticamente algo que é muito complexo e que nossa linguagem não alcança em sua completude: a vida. A questão, porém, não é entrarmos em disputas de saber (pois cada saber, cada conhecimento, possui, sem dúvida, sua importância), ou que paremos de produzir conhecimento sobre os fenômenos que se mostram, e neles tentarmos intervir. Trata-se muito mais de trazer à tona um olhar amplo para o campo de vida das pessoas, de agirmos conjuntamente, em comunidade (não só científica) quando algo se mostrar complexo demais para ser compreendido. O sofrimento humano é um ótimo exemplo de algo que precisa ser trabalhado dessa forma.
Assim, ao falarmos de saúde mental, devemos ter claro que falamos de vida, e não, meramente, de doenças e diagnósticos. E mais: falar de adoecimentos psicológicos ou psiquiátricos é falar de experiências de sofrimento. Isto devido ao fato de que aquilo que nos faz padecer tem relação direta com nossas experiências, com as relações que estabelecemos e com os modos que construímos quanto ao entendimento de nosso mundo, e não à uma questão específica e isolada, seja ela biológica ou de outra ordem. Portanto, por que não tentamos, em vez de desenvolver mais técnicas e diagnósticos, repensar nossos modos de vida, que podem ser, para tantos, geradores de relações violentas e causarem experiências de profundo sofrimento?
Esses são apenas alguns apontamentos e reflexões sobre o tema, mas tenho total consciência de que ainda precisamos discutir e ampliar esses olhares. Por que não fazemos isto juntos?
REFERÊNCIAS
HOLANDA, Renata Bessa. Experiências de sofrimento e diagnósticas de si: uma “viagem” por narrativas em paralaxe. Tese (doutorado) – Universidade Federal do Ceará, Centro de Humanidades, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Fortaleza, 2020.
Renata Bessa Holanda é Doutora e Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará, graduada em Psicologia pela Universidade de Fortaleza, com Formação em Psicoterapia Fenomenológico-Existencial, sob coordenação do professor Afonso Henrique Fonseca, Professora do Curso de Especialização Clínica em Gestalt-terapia do IGC - Instituto Gestalt do Ceará, e Psicoterapeuta de adultos e adolescentes.
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