Abordar as habilidades necessárias para ser um bom psicoterapeuta implica em discutir a questão da vocação ou, dito de outra forma, o quanto o profissional tem ou não as características suficientes para ser psicoterapeuta. Tecnicamente isso também é chamado de adequação vocacional e alguns especialistas em desenvolvimento de carreira consideram-na fundamental para se obter êxito na profissão escolhida.
Além disso, o sentimento de realização profissional está diretamente relacionado com o quanto se pode obter de satisfação ou prazer no trabalho. Segundo o provérbio chinês que diz “descubra o que gosta de fazer e não precisará trabalhar nem mais um dia de sua vida” a obtenção de prazer no trabalho dá a sensação de diversão e não de obrigação ou imposição social, fazendo com que a ação profissional, por mais cansativa, seja fonte de realização e sentido de vida. Nossa sociedade está carregada de exemplos de profissionais que optaram pela profissão em função do faturamento, mas estão longe de exercê-la com prazer ou senso de realização pessoal. O resultado são pessoas mal-humoradas, irritadiças e ríspidas nas relações, com desempenho bem abaixo do seu potencial, alto grau de absenteísmo e muitas vezes um manifesto desejo de fazer outra coisa e não o exercício daquela profissão.
Nesse post, pretendo examinar características apontadas por alguns autores como necessárias para ser clínico e também expor algumas formas de desenvolver essa característica. Ao contrário do entendimento de alguns, penso que o conjunto de habilidades para determinada profissão, nesse caso a psicoterapia, não são inatas, mas resultado de um acúmulo de informações e reações emocionais construídas através da interação com o meio e com elaborações internas que, a partir da infância, se transformam posteriormente em crenças e preferências pessoais. Não sendo inatas, essas características podem ser desenvolvidas e incrementadas. Isso vai depender obviamente de decisão, esforço, persistência e clareza de onde se quer chegar.
"o conjunto de habilidades para determinada profissão não são inatas, mas resultado de um acúmulo de informações e reações emocionais construídas através da interação com o meio e com elaborações internas"
Características da atividade de consultório
A atividade de consultório coloca o psicoterapeuta como um profissional liberal. É um profissional legalmente habilitado a colocar seus conhecimentos em práticas específicas que demandam conhecimento técnico, sendo regido por estatuto próprio. Sendo assim, possui ampla liberdade para executar suas funções (regulamentadas por Conselhos e Associações) independente de qualquer vínculo empregatício.
Dentre as vantagens apontadas em ser profissional liberal em geral, ou seja para todo e qualquer profissional liberal, posso citar: a ausência de hierarquia – não existe outro profissional a que se deve obedecer, como em muitos empregos; os horários de trabalho são flexíveis, ainda que o prazo com clientes tenha que ser obedecido, é possível se conciliar o trabalho com lazer, prática esportiva e presença com a família; independência de vagas no mercado de trabalho, já que se pode trabalhar por conta própria na área escolhida; faturamento diferenciado daquele em que se trabalha no regime da CLT, obviamente dependendo do quanto e como se dedica à profissão.
As vantagens específicas de ser psicoterapeuta implicam no aprimoramento do conhecimento do ser humano em profundidade, no privilégio de acompanhar altos e baixos das pessoas, de presenciar seu processo de crescimento e também sua melhora do sofrimento.
Habilidades do psicoterapeuta
A condição de profissional liberal irá, correlatamente, exigir do psicoterapeuta algumas habilidades que, embora possam ser consideradas óbvias, precisam ser registradas, afim de que o futuro clínico esteja aware do que lhe aguarda e do que deve desenvolver para exercer a profissão com mais tranquilidade e eficiência.
Habilidades para fazer a gestão da autonomia – a ausência de hierarquia pode levar a descoberta de que a liberdade para utilizar o tempo pode trazer dificuldade de fazer escolhas e de persistir nelas até que se obtenha os resultados desejados. Ter autonomia implica em saber articular o tempo dedicado para atender as diversas necessidades de gestão da carreira e da profissão. É preciso conjugar o tempo dedicado a pacientes com o estudo contínuo, com a participação em congressos e grupos de estudos ou supervisão, além de atividades pessoais tais como prática de esporte e presença junto a família. A satisfação de necessidades financeiras pode facilmente se sobrepor às outras citadas anteriormente, fazendo com que o clínico acabe por se descobrir cansado, com alto grau de estresse, não se aprimorando profissionalmente e também não se dedicando suficientemente a sua saúde e família. A sua própria psicoterapia será um excelente aliado para checar com regularidade como anda esse equilíbrio e como o psicoterapeuta está gerindo seu tempo e suas escolhas.
Habilidade na gestão financeira – é próprio da atividade de consultório a oscilação do faturamento mensal. Haverá meses em que o clínico terá honorários suficientes para pagar suas despesas, ficando com uma sobra razoável e meses em que poderá ser igual ou inferior a suas despesas. Não ter uma renda definida e garantida todo mês pode prejudicar o controle do orçamento, além de que imprevistos como acidentes e adoecimentos podem trazer dificuldades financeiras.
"A habilidade de gestão dos recursos obtidos pode ser desenvolvida e melhorada através de cursos, assessorias e também com o autoexame em psicoterapia e grupos de crescimento"
Por isso, fazer gestão dos valores obtidos exige disciplina e controle dos impulsos para compras e para gastos desnecessários. Um bom planejamento financeiro articulado com a capacidade de estabelecer honorários, ser fiel a alocação dos recursos obtidos, além do desenvolvimento de um senso de constância em fazer reservas financeira serão fundamentais para que o profissional não apenas sobreviva da sua profissão, mas viva com prosperidade e com projetos para além de ser um profissional liberal.
Nossa cultura não possui a tradição no ensino de gestão de recursos econômicos e a facilidade de obtenção de bens através da contração de dívidas são um péssimo hábito, mas um hábito disseminado. Muitas vezes esse procedimento leva à sensação de satisfação imediata pela obtenção do bem ou situação de consumo desejada, mas é acompanhada por grandes períodos de privação e sofrimento para conseguir honrar a dívida do que foi obtido.
No entanto, a habilidade de gestão dos recursos obtidos pode ser desenvolvida e melhorada através de cursos, assessorias e também com o autoexame em psicoterapia e grupos de crescimento.
Habilidade para relacionar-se com o psicopatológico – o interesse pelo humano em todas suas condições é apontado por muitos clínicos como uma das qualidades exigidas do psicoterapeuta (Bucher, 1989; Brownell, 2014; Yalom, 2006). Mas afirmar “em todas suas condições” implica não apenas em gostar do estudo de antropologia, sociologia e filosofia, conhecimentos que são a porta de entrada para a profundidade nas incontáveis dimensões do humano e que propiciam ação para além da mera técnica ou exclusivamente de aplicação da técnica.
Embora a paixão pela técnica e sua eficácia sejam dominantes em muitos psicoterapeutas (constatados pelo seu apego à abordagem escolhida), o entendimento que o ser humano é anterior a elas é uma condição fundamental para um bom clínico, ao mesmo tempo em que é necessário querer lidar com as manifestações psicopatológicas e de conflito inerentes à prática, até mesmo suportar o impacto que isso terá sobre ele, aturando o confronto necessário para minimizar ou superar o sofrimento envolvido no adoecimento psíquico.
A psicopatologia é carregada de contradições, aspectos fantasiosos e ocorrências dramáticas, às vezes trágicas, a que o psicoterapeuta precisará ser compreensivo, paciente e dotado de “estômago” para o acompanhamento do definhamento psicológico, ocasionalmente sem melhora.
Essa habilidade pode ser desenvolvida a partir do momento em que o clínico vai cada vez em direção a situações de sofrimento humano, não para tornar-se mero espectador ou mero crítico, para lamentá-la e buscar conformidade, mas para compreendê-la em profundidade e saber que, mesmo as experiências mais destrutivas possuem um sentido a ser revelado e compreendido. Vale sempre a pena lembrar: os ornatos mais raros encontram-se no emaranho.
Acho ainda importante mencionar os paradoxos da profissão de psicoterapeuta apontados por Hycner (1995), como referência para habilidades que o psicoterapeuta precisa desenvolver para lidar com sentimentos e situações ditas paradoxais, pois não apresentam solução suficientes ou cabais: quanto mais o psicoterapeuta se esforça para integra-las, mas elas se revelam em sua contradição, apresentando-se como constitutivas da profissão de psicoterapia e com as quais, o psicoterapeuta terá que aprender a conviver, suportar e aceitar, de forma que não sejam em si conflituosas, mas referentes à tarefa e sua boa execução.
Habilidades técnicas – essas habilidades serão com certeza desenvolvidas através da formação do psicoterapeuta, através dos estudos da teoria e prática da psicoterapia, do exercício clínico, da supervisão dos casos por ele atendido e da sua própria psicoterapia.
Com alguma variação de abordagem para abordagem, vale a pena citar a capacidade de intuição para acessar conflitos não declarados pelo paciente, a habilidade de mobilizar a colaboração do paciente, criando uma relação distinta à de sofrimento, angústia e dramas trazidos por ele. A habilidade para mobilizar-se pessoalmente e engajar-se no seu trabalho, em alguns momentos esperando pacientemente, em outros intervindo de acordo com o exigido pela situação; a habilidade em se controlar e se reter, não cedendo às demandas ou pedidos de satisfação imediata do paciente, ao mesmo tempo em que exerce a habilidade de devolver ao paciente o poder mágico e o saber ilimitado que este lhe atribui.
Essas habilidades formam as competências para ser psicoterapeuta e poderiam ser discutidas e apresentadas exaustivamente aqui, mas teríamos um largo espaço e tempo a serem tomados. Apenas quero citar algumas para servirem como referência para o futuro clínico e para que ele mesmo possa, por si, buscar modos de aprofundamento. Cumpre novamente afirmar que podem ser desenvolvidas, não são inatas, mas históricas e estão ao alcance de qualquer pessoa dedicada com o foco bem estabelecido em tornar-se um bom psicoterapeuta.
"O processo mais difícil é aquele que desconhecemos. Via de regra o desconhecido traz medo e insegurança, mas vislumbrar onde se quer chegar ajuda a estabelecer os possíveis trajetos e a corrigi-los ao longo do caminho"
O papel do autoconhecimento
Não adianta muito querer inventar. Para saber quais habilidades o psicoterapeuta precisará desenvolver é necessário realizar um autoconhecimento honesto e persistente, afim de revelar para si mesmo quais são os pontos que estão em andamento, os que estão bem estabelecidos, aqueles que precisam mais de atenção e aqueles que ainda nem se começou a desenvolver.
Podemos falar no autoconhecimento pessoal e no profissional. Os dois estão em íntima harmonia e pode ser necessário adentrar um para chegar até o outro, mas, como disse uma vez Saramago, “é preciso sair da ilha para ver a ilha. Não nos vemos se não saímos de nós.” Então, pedir o auxílio do outro (o psicoterapeuta, o professor, o amigo verdadeiro, o profissional experiente) é um passo importante para começar o trabalho de busca.
Alguns aspectos que podem ser considerados, afim de começar essa lida, dizem respeito a quais são os objetivos do psicoterapeuta com sua profissão. Esses objetivos podem ser desdobrados em vários âmbitos, examinados com minúcia e levar o clínico a pensar como se articulam efetivamente com sua escolha profissional. A consideração de seus valores efetivos, sua personalidade e seu estilo de trabalho também são aspectos que valem a pena se examinar, pois o ser humano é uma totalidade que se modifica a partir das relações que estabelece com o mundo e das elaborações que faz desse mundo para si mesmo.
O processo mais difícil é aquele que desconhecemos. Via de regra o desconhecido traz medo e insegurança, mas vislumbrar onde se quer chegar ajuda a estabelecer os possíveis trajetos e a corrigi-los ao longo do caminho.
Referências
Bucher, R. (1989) A psicoterapia pela fala: fundamentos, princípios, questionamentos. São Paulo: EPU.
Brownell, P. (2014) Manual de teoria, pesquisa e prática em Gestalt-terapia. Tradução de Maria Oneide Villey. Petrópolis: Vozes.
Hycner, R. (1995) De pessoa a pessoa: psicoterapia dialógica. Tradução Eliza Plass Z. Gomes, Enila Chagas, Márcia Portella. São Paulo: Summus.
Yalom, Irvin D. (2006) Psicoterapia de grupo: teoria e prática. Tradução Ronaldo Cataldo Costa. Porto Alegre: Artmed.
Silverio Karwowski - é psicólogo e licenciado em psicologia, mestre em psicologia clínica, psicoterapeuta e especialista em Gestalt-terapia. Atualmente é professor e diretor do IGC - Instituto Gestalt do Ceará, tendo se dedicado a formação de psicoterapeutas há mais de 25 anos.
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