Já me perguntei, algumas vezes, o porquê do cinema ser considerado a sétima arte; posteriormente, tive interesse em saber quais são as outras seis e tomei conhecimento de que existe até a décima primeira arte. Essa curiosidade foi reavivada, principalmente, durante a leitura, em andamento, do livro: O Céu da Meia-Noite, da autora norte americana Lily Brooks-Dalton, que me fez viajar para os gelos do Ártico, para o espaço e também para a mente e as emoções dos cientistas presentes no enredo.
Me vi gostando tanto da história que fui procurar se há outros livros que tratam de temas semelhantes e soube que esse livro virou filme em 2020. A sétima arte (cinema) tem dessas coisas, costuma flertar com a sexta arte (literatura) e esta adora o movimento que esse flerte proporciona nas telonas.
Por sua vez, a psicologia, não raras vezes, é seduzida pela literatura com gracejos, convites e encontros despretensiosos e profundos. Um bom exemplo disso são as obras de Fiódor Dostoievski, escritor e filósofo russo que teve seus escritos chamados de romances filosóficos e romances psicológicos.
Pesquisando sobre esse autor, soube que ele é considerado um dos maiores romancistas e pensadores da história, inclusive, houve quem o considerasse um dos maiores “psicólogos” que já existiram ou ainda um investigador da psiquê.
Dostoievski influenciou diretamente a Literatura, a Filosofia, a Psicologia e a Teologia. Em suas obras, são abordados temas como cristianismo, culpa, pobreza, violência, altruísmo, transtornos mentais, suicídio, com uma retratação filosófica e psicológica profunda e atemporal.
O caos, o tédio, o medo, a solidão e a esperança, por vezes, dão a impressão de protagonizarem o enredo. Nele, as emoções e as sensações são intensas, fazendo o leitor refletir que por mais que o intelecto seja privilegiado em relação à curva normal...
Dante Moreira Leite, filósofo, em seu livro: Psicologia e Literatura, diz o seguinte: “É bem conhecida a afirmação de Dostoiévski sobre os poderes relativos da literatura e da psicologia. Para ele, um psicólogo jamais alcançaria a eficácia do escritor: é na literatura que encontramos um retrato acurado da mente. Mas mesmo para aqueles que reivindicam superioridade para um desses dois polos, uma coisa é certa: psicologia e literatura partilham uma ampla fronteira e guardam inter-relações significativas”.
Essa fronteira é profícua para ambas as áreas, é a arte e a ciência em seu encontro mais íntimo, fazendo-nos refletir que a psicologia também possui um caráter estético e artístico e que a literatura cumpre também o papel de transmitir os conhecimentos e a cultura de uma comunidade. Há inúmeros livros que atestam esse encontro, dos mais singelos aos mais complexos: O Pequeno Príncipe (Saint-Exupéry), Dom Casmurro (Machado de Assis), A Paixão Segundo G.H. (Clarice Lispector), dentre outros.
O Céu da Meia-Noite tem um título brilhante ao fazer alusão ao encontro entre o Ártico e o espaço, pano de fundo do livro, em que astronautas (cientistas do céu) e um cientista do Ártico parecem ser os únicos sobreviventes de uma catástrofe mundial. E apesar de tão distantes planetariamente, eles se mantém unidos pela tecnologia do rádio transmissor, na expectativa de uma comunicação, mesmo que seja de forma monossilábica ou por um curto lapso de tempo.
O caos, o tédio, o medo, a solidão e a esperança, por vezes, dão a impressão de protagonizarem o enredo. Nele, as emoções e as sensações são intensas, fazendo o leitor refletir que por mais que o intelecto seja privilegiado em relação à curva normal, estatisticamente falando, abaixo da superfície, algo grita, pulsa muito mais forte e se sobrepõe nos seres humanos, quando se está frente a frente com a finitude, com o instinto de sobrevivência, autopreservação, seja lá que nome se dê a tudo isso.
Todavia, apesar da iminência de um fim, ainda há tempo e espaço para os cientistas se renderem à apreciação do belo, da divindade que reside nas estrelas, na aurora boreal e na visão azul do planeta Terra, num ajustamento criativo ímpar, inclusive, com direito a apaixonamento entre um casal de astronautas.
Gestalteando com os elementos psicológicos e literários do Céu da Meia-Noite, entendo que o rádio transmissor é a figura, a necessidade mais premente dos cientistas que é estabelecer contato apesar das fronteiras entre o céu e a terra. Contato do qual vinham fugindo durante suas vidas e que nesse momento vem como a maior necessidade, atravessando limites entre céu, terra, tempo e espaço.
Em Gestalt-terapia, podemos chamar essa fuga de: retroflexão; ou seja, alguns desses cientistas, ao longo de suas vidas, evitaram o contato genuíno com o outro, desinvestindo toda a energia que poderia ter sido direcionada para as relações interpessoais e direcionando-a para si próprios e/ou para sua profissão, carreira e desafios profissionais.
Com as dificuldades em se traçar uma rota de retorno à civilização, uma situação limítrofe e quase definitiva se instala na tripulação, desencadeando profundas reflexões de vida, sobre o que poderia ter sido, evocando o passado com complacência, saudade, pesar e culpa, numa awareness às avessas e infrutífera.
...arte e ciência também imortalizam e concretizam a existência humana, numa complementaridade e interdependência constantes...
Na narrativa, os cientistas que se permitem fazer essa empreitada interior, com mergulhos profundos num passado distante e literalmente inacessível, também o fazem no presente, sem uma perspectiva de futuro palpável, também literalmente. O aqui e agora se interpõe com grande intensidade, de forma contundente, mas não desesperadora para esses astronautas.
A infinitude do céu e o tempo Cronos da meia-noite norteiam o espaço e o tempo existencial deles, bem como a de qualquer outro ser humano que também esteja imerso num tempo e num espaço existenciais.
Numa visão macrocósmica, arte e ciência também imortalizam e concretizam a existência humana, numa complementaridade e interdependência constantes, como bem disse Dostoievski no início desse texto, ao falar da fronteira entre literatura e psicologia e suas mútuas influências.
A interrelação entre arte e ciência não é privativa apenas da literatura e da psicologia, há também outras áreas do conhecimento que formulam suas questões ante a objetividade e a subjetividade do pensamento científico, conforme constatei ao fazer uma varredura no Google e encontrei no jornal da Universidade de São Paulo – USP, uma matéria bem interessante em que Julia ABS, coreógrafa e bailarina, em sua pesquisa de mestrado, investiga as relações entre a dança e a astronomia e se utiliza da astrofísica para “observar a dança de buracos negros e o giro dos planetas em torno de estrelas distantes”.
Não tenho dúvidas de que a Gestalt-terapia também estabelece diálogos admiráveis com a arte e a ciência.
Joyce de Brito Lima - Psicóloga , Psicoterapeuta do PAS - Programa de Atendimento Social do IGC e ex-aluna do Curso de Formação em Gestalt-terapia Clínica do IGC. Visite: www.joycebrito.com.
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