Vivemos hoje sob o predomínio da imagem nos modos de expressão. Diversas construções midiáticas tem atestado isso. Desde a expressão “uma imagem vale mais que mil palavras”, até a negativa dos participantes de redes sociais em lerem os textos associados às publicações, identificados como “textão”, sendo esses assim identificados quando passam de três linhas. As próprias redes limitam o número de palavras nas imagens, reafirmando assim o predomínio visual.
Fora das redes sociais, mas ainda que implicados nelas, a imagem corporal correspondente a modelos, quer de beleza, quer de saúde, impõe ainda mais a imagem como condição para ser. Mas não qualquer imagem, como alguma que fosse constituída pela diversidade, sim a imagem que confirma o modelo de beleza instituído e ao mesmo tempo se configura, ela mesma, como modelo. É nessa direção que apontam o corpo “bem-feito” e o corpo “sarado”, o corpo branco e longilíneo, os cabelos loiros, os olhos claros, a boa estatura.
É como se interessasse cada vez mais a intenção de quem mostra e publica e cada vez menos o que é realmente quem mostra e publica. Dessa forma, desvincula-se cada vez mais o ser da aparência, desconsiderando que o ser e a aparência sejam indissociáveis, mas nesse caso falseáveis.
A era da imagem pode também ser chamada de era da representação, na medida em que as imagens são cada vez mais trabalhadas para parecerem o que se deseja que pareça, ou o que se deseja evocar, e não o que se está podendo realmente ser. É como se interessasse cada vez mais a intenção de quem mostra e publica e cada vez menos o que é realmente quem mostra e publica. Dessa forma, desvincula-se cada vez mais o ser da aparência, desconsiderando que o ser e a aparência sejam indissociáveis, mas nesse caso falseáveis.
O falseamento das imagens
O falseamento se faz presente nas idealizações sociais e nos modos de representação dessas idealizações. Não raro, essas idealizações apontam sempre em direção a um estado de perfeição. Então as pessoas são exigidas e depois incorporam as exigências de perfeição nas suas relações e em supostos papeis que desempenham nas suas vidas, quando os papeis nada mais são que aspectos vivenciais, artificialmente construídos e, por isso mesmo, moldáveis para que cada vez mais agreguem perspectivas, elas mesmas, em sua totalidade inatingíveis.
Ser uma boa filha, ser uma boa esposa, mãe, companheira, mulher, profissional, e demais perspectivas de um existir feminino se diferenciam radicalmente de ser perfeita enquanto mulher, mãe, esposa, companheira, filha etc. Nesse caso, é feita uma similitude entre o bom e o perfeito, desconsiderando que ser bom é possível, ser perfeito não. E dessa forma as pessoas seguem abominando qualquer tipo de erro, fracasso ou modo que de ser que não produza total satisfação – aqui parece uma delimitação da perfeição: não trazer nenhuma insatisfação para o outro, quando em relação com ele.
Quando a imagem é moldada para se atingir um fim específico, ela destrói a imaginação possível referente ao outro como alguém livre para imaginar, pois o que se pretende é um evocado prévio, de onde o outro não poderá fugir. Tem-se um falseamento do real e um aprisionamento do modo de ver.
Recentemente tive uma solicitação de que minhas aulas fossem “aulas-show”, pois as primeiras delas, na avaliação de poucos alunos, tinham sido. Fui sutilmente chamado a atenção, e instigado a descobrir porque minhas aulas tinham “saído da curva”. No exame das aulas-show encontrei a ausência de tédio, de expectativa de presença, interdependência, frustração – seja no pensamento ou entendimento e, principalmente, de atividades por parte dos alunos. O show é aquele que coloca alguém no centro para se responsabilizar pela dimensão exclusiva do divertimento, do encantamento, da beleza, da atividade, da satisfação e do ser. O deslocamento do eixo traz o incômodo da responsabilidade existencial e da construção do próprio ser. Nesse movimento, o ideal de perfeição se esvai e a frustração aparece.
É nesse movimento, de forma cada vez mais sutil que os imperativos de correspondência às imagens – na forma de postagens em redes sociais, de delimitação corporal, de atuações performáticas, de eleições de papéis perfeitos – que as idealizações imagéticas vão se impondo e irrompendo em todos nós. Torna-se impossível ser exatamente como se é, erigindo-se o imperativo do que se dever. E tome aprisionamento... e sofrimento.
Quando a imagem é moldada para se atingir um fim específico, ela destrói a imaginação possível referente ao outro como alguém livre para imaginar, pois o que se pretende é um evocado prévio, de onde o outro não poderá fugir. Tem-se um falseamento do real e um aprisionamento do modo de ver. Esses elementos, pertinentes ao mundo da divulgação e do marketing, conduzem cada vez mais à ausência da diferença, conduzindo a uma ditadura daquilo que o público quer e espera ver, matando qualquer possibilidade de diálogo.
Dessa forma os pacientes veem a si mesmos como rotos, cegos, surdos e insensíveis, o que de fato estão. Mas não pela não correspondência à imagética de perfeição, e sim pela perda de si mesmos na busca impositiva da correspondência
No consultório
No consultório, os pacientes costumeiramente chegam sem a menor consciência da inibição de suas liberdades, presos por demais que estão nas delimitações representativas de perfeição. As prescrições para o ser feliz perpassam valores que foram historicamente construídos, e são tomados como naturais, fazendo parecer – uma imagem transformada em traço de personalidade – que o script de sucesso é tão único como eficaz. Dessa forma os pacientes veem a si mesmos como rotos, cegos, surdos e insensíveis, o que de fato estão. Mas não pela não correspondência à imagética de perfeição, e sim pela perda de si mesmos na busca impositiva da correspondência. O genuíno modo de ser foi perdido ou encapsulado, em que por vezes, sua assunção é a própria condenação responsável pela cegueira, insensibilidade, surdez e paralisia.
Encontra-se o psicoterapeuta solicitado a confirmar o caminho de correspondência e, muito mais, a apontar o que de errado o paciente fez nesse caminho, de forma que o paciente não o percorre integralmente, ou que o caminho mesmo não o leva onde prometeu levar. Solicitações desesperadas para se entrar na “curva do normal”, na obtenção de todas as promessas por se estar desesperadamente se esforçando na correspondência ao ideal.
O psicoterapeuta e suas imagens
É necessário que o psicoterapeuta esteja suficientemente livre, ele mesmo, das incontáveis formas de imagens, e das sutis representações das imagens já impostas a ele como modo tão único quanto eficaz para ser feliz. Enquanto o próprio psicoterapeuta tenta, ele mesmo, se fazer ver, divulgar-se em redes sociais através, exemplarmente, de “macaquices postais” supostamente a serviço da comunicação e divulgação, estará envolto sem o saber, na mesma deficiência visual, sinestésica, auditiva e motora que ele tem a missão de auxiliar a mitigar em seus pacientes.
...fazer uma oposição necessária ao parecer, o saber se torna imperioso. É cada vez mais necessário se conquistar o que não pode ser roubado, mas ainda assim pode ser visto e percebido.
É necessário o mínimo de investimentos seguros, em aspectos que, dentro da nossa humana transitoriedade, se mostrem o mais permanente possível. A transitoriedade da imagem cumpre sua missão no dinamismo da mudança. Anuncia por esse aspecto uma dinâmica que se quer, pelo modelo, fixar e prender.
Nesse caso, sem fazer uma oposição necessária ao parecer, o saber se torna imperioso. É cada vez mais necessário se conquistar o que não pode ser roubado, mas ainda assim pode ser visto e percebido. O investimento lento e laborioso do psicoterapeuta em aprendizagem consistente sobre os possíveis e infindáveis modos de ser, a articulação desses modos com modelos impostos e o entendimento das formas de libertação dos modelos leva à restituição da imagem ao transitório. Sua presença é novamente colada ao ser, pois ao múltiplo ser também se permitem a multiplicidade das imagens. Os modelos são apenas referenciais e não imposições, e as referências são possibilidades e não marcas de sucesso.
Atuação psicoterápica
Há que ser, como psicoterapeuta, aquele que calmamente perscruta todas as imagens impressas no verbo do paciente. Examiná-las com o fim de, sob cada tema subjacente, buscar e libertar os sentidos que foram ao longo do tempo fixados e impostos a ferro e fogo.
A descoberta das imagens e de seus modelos correspondentes, a identificação de imposições que aparecem sob a forma de “dever”, “ter que”, seguidos do entendimento dos motivos (sentidos motores) e distinguindo-os dos “poderes”, ou seja, das reais possibilidades de ser e para ser, podem levar a status de maiores impermanência. Ao contrário do imaginado, o paciente não atinge lugares seguros, mas segurança para estar em muitos lugares, ainda que sua presença seja breve, mas suficiente para se obter satisfações e insatisfações, como toda relação real e profunda.
A profusão das palavras permite navega-las por seus temas. Esses, relativamente permanentes, precisam ser elucidados com a finalidade de se tornarem mais transitórios e diversos, assim como viver plenamente implica na obtenção de profundidade em tudo que é fugaz, diverso e mutável.
Quando o psicoterapeuta se apropria, ele mesmo, da temática de seu paciente, o próprio paciente poderá estar mais inteiramente consigo, dedicado a identificação, reconhecimento, entendimento e aceitação do sofrimento inerente ao modo de ter que imagética e representativamente corresponder aos modos instituídos de ser.
Com a língua solta
A libertação, ou melhor, a integração da imagem ao ser a liberta de delimitações e intenções prévias, a recoloca como condição e, paradoxalmente, abre o espaço para o verbo. O dizer, na forma de expressões bem ditas, de palavras que dizem e prescindem de quantidade, produzem reflexões.
Pessoas que apreciam o exame das diferenças – “pensar é pensar a diferença” diria Heidegger – poderão se lançar à necessidade de aproximar em “co-respondência” o pensar do dizer, o sentir do agir, o viver do parecer. O paciente então já não mais é cego, ainda que se possa saber iludido; já não mais é surdo, ainda que escute o não dito; já não é mais insensível, podendo preferir a que toques sentir; já não é velocista, ainda que dado a se divertir com a distinção de preferências, entre a velocidade do coelho e da tartaruga.
Dizer-se e redizer como um componente da imagem, como quem mostra um aspecto que desavisadamente, irá produzir algum efeito em quem é livre para escolher sentidos e dar à imagem possibilidades múltiplas, formas variadas e nada prévias. A era da imagem clama por imagens que sejam verbo. Dizer é dizer-se.
Silverio Karwowski - é psicólogo e licenciado em psicologia, mestre em psicologia clínica, psicoterapeuta e especialista em Gestalt-terapia. Atualmente é professor e diretor do IGC - Instituto Gestalt do Ceará, tendo se dedicado a formação de psicoterapeutas há mais de 25 anos.
Um assunto intrigante, de muita discussão e reflexão, pois ,de certa forma, não somos totalmente lebres,existe nuancias culturais, sociais e poderia dizer educativas.
Gostei muito!