Meu objetivo no presente texto é refletir sobre o papel de psicoterapeuta e como isto se relaciona com a pessoa do psicoterapeuta. Existem muitos mitos sobre a posição de psicoterapeuta, tanto por parte do público em geral quanto por parte dos estudantes de psicologia. Pretendo partir minha reflexão a partir de um mito do público leigo e um dos estudantes de psicologia.
Os mitos e a pessoa do psicoterapeuta
Um dos mitos comuns por parte do público leigo é de que o psicólogo está o tempo todo analisando outras pessoas e, na psicoterapia, isso aparece na forma de um receio por parte de uma das pessoas em se expor à outra. Este mito faz sentido se pensarmos que nossa sociedade está cheia de modelos e molduras a que as pessoas buscam se submeter, frequentemente em detrimento de sua própria espontaneidade. São muitos os imperativos de como devem ou não devem ser. Assim, ao se dirigir a um terapeuta, uma pessoa imagina que corre o risco de ser julgada.
O medo de ser julgado pode ser reforçado pela crença de que o terapeuta está o tempo todo analisando o cliente. Entretanto, como terapeuta, o trabalho do psicoterapeuta é muito mais acolher o cliente do que o encaixar em algum diagnóstico ou conceito teórico. Aliás, a habilidade para acolher é essencial para o trabalho do psicoterapeuta. A capacidade de acolhimento de uma pessoa pode ajudar outra a acolher a si mesma.
Já na faculdade os estudantes de psicologia discutem a atitude de buscar adequar o paciente a alguma categoria preconcebida. Na minha formação eu revisitei algumas vezes o mito de Procusto. Esta figura mitológica era um bandido que ficava em uma estrada e capturava os viajantes e os levava a um leito. Se o viajante fosse maior que o leito, ele lhe cortava os pés, se fosse menor, esticava o corpo, de maneira a que todos se tornassem do tamanho do seu leito.
Procusto - segundo o mito, o bandido tentava encaixar toda pessoa supostamente doente em seu leito.
Arregimentar o poder de ajustamento criativo pode ser entendido como participar da construção de um campo favorável a capacidade do cliente de produzir novas experiências, ousando pensar, sentir e agir de uma forma nova, de acordo com o seu projeto de vida
O mito acima parece caricato e violento, mas nos provoca a reflexão sobre qual atitude temos como pessoas diante de outras pessoas. Como psicoterapeuta, meu papel não é categorizar, mas acolher o outro em sua singularidade. A presente discussão pode ser encontrada de forma enfática na obra de Perls, Hefferline e Goodman (1951/1997): “O problema da psicoterapia é arregimentar o poder de ajustamento criativo do paciente sem forçá-lo a encaixar-se no estereótipo da concepção científica do terapeuta.” (p. 90).
Arregimentar o poder de ajustamento criativo pode ser entendido como participar da construção de um campo favorável a capacidade do cliente de produzir novas experiências, ousando pensar, sentir e agir de uma forma nova, de acordo com o seu projeto de vida. Importante aqui destacar que isto se dá de acordo com o projeto de vida. O cliente tem o direito de optar por permanecer do jeito que está, de repetir os mesmos comportamentos e escolher a própria vida. Um cliente não pode ser forçado a mudar para se tornar aquilo que o terapeuta considera saudável ou correto. Aliás, de maneira geral, certo e errado são valores que dificilmente combinam com um processo terapêutico, ainda que muitas vezes trazidos pelos pacientes. Ao contrário, os fundadores da Gestalt-terapia afirmam que o papel do terapeuta é permanecer na experiência concreta do paciente (Perls, Hefferline e Goodman, 1951/1997).
A mudança: uma teoria paradoxal
A teoria paradoxal da mudança nos ensina que sempre que tentamos mudar pela coerção, falhamos. Se por outro lado, tentamos permanecer como estamos ou nos tornar o que somos, nos transformamos (Pinheiro, 2014). Isto é facilmente observado na prática clínica. Se o cliente for estimulado a se tornar algo diferente do que é, se defenderá da pressão e permanecerá com os mesmos sintomas e problemas. Se, por outro lado, é acolhido e não sente que precisa se proteger, pode integrar a defesa que vêm apresentando e, confiando no cuidado do terapeuta e na sua própria capacidade de lidar com suas questões, pode arriscar algo novo.
Interessante apontar, que, muitas vezes, não é somente o cliente que está preocupado em se encaixar em uma moldura de como deve ser. Comumente os psicoterapeutas buscam atuar de acordo com uma expectativa de um psicólogo ideal. São muitas e variadas as características do terapeuta ideal. Para alguns, o psicólogo ideal é invulnerável: não se abala ou se afeta pelo que o cliente fala e precisa ser sempre “forte”. Em outros momentos, o papel idealizado pelos terapeutas é alguém que sempre tem as respostas e é capaz de fazer seu cliente se sentir melhor, contendo qualquer angústia. Também pode ser que o terapeuta se cobre a ter a capacidade de produzir insights no cliente.
muitas vezes, não é somente o cliente que está preocupado em se encaixar em uma moldura de como deve ser. Comumente os psicoterapeutas buscam atuar de acordo com uma expectativa de um psicólogo ideal.
Curiosamente, como disse Freud, “seríamos melhores se não quiséssemos ser tão bons”. Ao buscar a segurança que seria obtida ao executar o papel de forma ideal, o terapeuta engana-se e sabota seu intuito de excelência. Frequentemente, é quando o terapeuta se permite ousar e sair de uma postura extremamente técnica e se colocar diante do cliente como outro ser humano que ele consegue ajudar mais aquele que lhe pede ajuda.
Conhecimento técnico ou conhecimento pessoal?
A busca por realizar um desempenho técnico e de se apoiar no conhecimento estritamente teórico ao se relacionar com um cliente não deixa de ser uma busca pela segurança, uma sorte de manual que garanta ao terapeuta uma proteção contra erros, o que se configura como uma proteção falsa, ou seja, esta segurança não pode ser atingida (Hycner, 1995).
Possivelmente muitos terapeutas alimentam a crença de que precisam estar prontos e resolvidos para desempenharem a função de terapeuta. Porém, são as vulnerabilidades do terapeuta que o tornam mais aberto e sensível para a experiência do cliente e que lhe favorecem um sentimento de empatia. Por outro lado, paradoxalmente, se o terapeuta está vulnerável demais, pode ser que suas defesas contra suas questões em aberto dificultem ou impossibilitem um encontro verdadeiro com o cliente (Hycner, 1995).
Mesmo quando se apresenta na relação como outro ser humano, o terapeuta não abandona seu papel profissional. Os sentimentos e impressões do terapeuta estão a serviço do cliente e da relação terapêutica. Quando o terapeuta comunica ao cliente como se sente ao ouvi-lo, está se colocando como alteridade e como parte de um campo formado por terapeuta e cliente, um campo que pode dizer muito do cliente e o ajudar.
Não se mora encima da técnica.
O terapeuta que busca ser inabalável talvez evite apresentar ao seu cliente a forma como este lhe afeta, mas é justamente aí que se encontra o maior potencial da relação terapêutica
Por exemplo, se um terapeuta se percebe com uma atitude defensiva, isto pode dizer algo da postura do paciente, que pode estar sendo agressiva. Se o terapeuta ignorar os próprios sentimentos, poderá abrir mão de uma excelente via de compreensão do cliente. Pode ser que o terapeuta se sinta entediado, o que pode indicar uma monotonia na fala ou na vida do cliente. O terapeuta que busca ser inabalável talvez evite apresentar ao seu cliente a forma como este lhe afeta, mas é justamente aí que se encontra o maior potencial da relação terapêutica.
Em muitas ocasiões o terapeuta precisa adotar uma postura polar oposta à do cliente, representando aquilo que este não integrou ou rejeitou. Por exemplo, se um cliente é demasiado racional, o terapeuta precisa adotar uma postura mais sensível. Se o cliente é extremamente sensível, o terapeuta precisa se colocar como alguém mais racional (Hycner, 1995). Certa vez atendi um paciente que tinha dificuldade de expressar ou mesmo acessar os próprios sentimentos e adotava sempre uma linguagem formal e evitativa. Ao conversarmos, ele relatou uma situação extremamente frustrante, mas quando eu indaguei como ele se sentia ele disse que achava desnecessário o que tinha ocorrido. Neste momento, percebendo como ele havia mais uma vez se desviado do sentimento em nome de manter uma linguagem e uma sessão formal, eu lhe respondi que em seu lugar eu me sentiria com muita raiva e usei um palavrão! Isso facilitou que o cliente se permitisse se expressar de forma mais espontânea e entrasse em contato com seus sentimentos, algo que possivelmente não teria ocorrido se tivéssemos nos mantido com nosso linguajar formal.
A relação sempre ensina
A prática clínica revela que, dentre os momentos mais ricos e férteis da psicoterapia estão aqueles em que terapeuta e cliente podem conversar sobre a relação que estabelecem entre si. A relação terapêutica que ocorre durante a sessão é a experiência concreta mais próxima disponível, muito mais próxima do que aquelas que o cliente conta quando relata os eventos de sua semana. Ao conversar sobre a relação terapêutica, psicólogo e cliente podem perceber quais as atitudes do cliente em relação ao terapeuta, o que o cliente pede ao terapeuta e por meio de que maneira. Nessa conversa o terapeuta pode se utilizar da forma como se sente para compreender que tipo de pedido o cliente lhe dirige, às vezes antes mesmo do cliente se dar conta disso. (Muller-Granzotto & Muller-Granzotto, 2012).
O campo formado por cliente e terapeuta diz também da forma como ambos se relacionam fora do setting clínico, de modo que o aprendizado sobre como o cliente se comporta com o terapeuta pode dizer da forma como ele estabelece relações fora da sessão.
Muito além do referencial teórico do terapeuta, é sua pessoa a principal ferramenta de ajuda para o cliente. Ao ser espontâneo e acolhedor consigo mesmo e com o cliente, o terapeuta ajuda a pessoa que lhe procurou a recuperar sua espontaneidade e criatividade, na medida em que, tornando-se o que é, ele se transforma em algo novo. Quando o cliente recobra sua criatividade e se aceita, pode se tornar mais inteiro e levar uma vida mais satisfatória, ousando sair de molduras e se experimentando.
Acredito ter conseguido apontar a importância de o terapeuta se colocar como pessoa na relação terapêutica, o que em muito pode ajudar a pessoa que o procurou. Gostaria ainda de salientar algumas práticas que podem contribuir para a potencialização do terapeuta: o estudo, a supervisão e a própria terapia do terapeuta. Além disso, ressalto que atividades vivenciais como a dança ou a biodança podem favorecer muito a habilidade do terapeuta de entrar em contato com os próprios sentimentos e se permitir novas experiências, o que por sua vez, o torna um terapeuta mais sensível e mais apto a criar um clima em que também o cliente possa se permitir novidades.
Referências
Hycner, R. (1995). De pessoa a pessoa. Summus Editorial.
Müller-Granzotto, M. J., & Müller-Granzotto, R. L. (2012). Clínicas Gestálticas: Sentido ético, político e antropológico da teoria do self. Summus Editorial.
Perls, F., Hefferline, R., & Goodman, P. (1951/1997). Gestalt-terapia. São Paulo: Summus.
Pinheiro. M. (2014). Teoria Paradoxal da Mudança. Em: Frazão, L. M., Fukumitsu, K. O., Costa, V. E. S. M., Schillings, A., Cardella, B. H. P., Andrade, C. C., ... & Lima, P. Gestalt-terapia: conceitos fundamentais (Vol. 2). Summus Editorial.
Rafael Cidrão Campos - CRP 11/08944 - Mestre em Psicologia pela Universidade de Fortaleza - UNIFOR (Tema: Experiência vivida de ansiedade em adolescentes em processo seletivo para ingresso no ensino superior), com Formação em Gestalt-terapia pelo Instituto Gestalt do Ceará - IGC e Graduação em Psicologia pela Universidade de Fortaleza - UNIFOR, tendo como foco de estudos a área de ansiedade, depressão e insegurança. Atualmente coordena um grupo de estudos com o tema "Segurança e risco" no IGC - Instituto Gestalt do Ceará.
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