Em minhas práticas como psicóloga, percebo que uma das atitudes mais importantes e a qual deve estar presente em meu cotidiano profissional é a atitude de cuidado.
Porém, essa atitude também me traz muitas reflexões e questionamentos, pois, cada vez mais, isso que se chama de cuidado me parece estar chegando perto daquilo que Laclau (1994) chamou de significante vazio, ou seja, um símbolo vago e impreciso, despido de um conteúdo concreto, do qual as pessoas podem tomar tanto para praticar atitudes de respeito e abertura às diferenças, como também de submissão à regras e imposições. Discutamos sobre isso um pouco melhor.
Existem diversas ações e modos de cuidado. Entender sua origem e sua ontologia é uma necessidade para acesso ao bem cuidar.
"Cuidar é mais que um ato; é uma atitude. Portanto abrange mais que um momento de atenção, de zelo e desvelo"
Para Heidegger, um dos primeiros filósofos a se dedicar, propriamente, ao tema, o cuidado se trata de uma questão ontológica, sendo entendido originariamente como “cura”, constituinte da existência humana: “Enquanto totalidade originária de sua estrutura, a cura se acha, do ponto de vista existencial a priori, ‘antes’ de toda ‘atitude’ e ‘situação’ da pre-sença, o que sempre significa dizer que ela se acha em toda atitude e situação de fato” (HEIDEGGER, 1927/1997, p. 258). Heidegger revela, ainda, o cuidado como o ato de abertura às possibilidades, um organismo em disposição ao mundo, um modo de ser que torna a existência do ser-aí autêntica, em contato com a finitude.
Outros construtos
Partindo desta inspiração, autores na grande área da saúde também discutiram sobre o tema, ressaltando a tamanha importância dessa para os profissionais da área, que se encontram em contato direto e constante com o sofrimento e tantas outras situações vivenciadas pelo outro. Ayres (2004) é um desses autores, que defende ser o cuidado:
Um construto filosófico, uma categoria com a qual se quer designar simultaneamente, uma compreensão filosófica e uma atitude prática frente ao sentido que as ações de saúde adquirem nas diversas situações em que se reclama uma ação terapêutica, isto é, uma interação entre dois ou mais sujeitos visando o alívio de um sofrimento ou o alcance de um bem-estar, sempre mediada por saberes especificamente voltados para essa finalidade (AYRES, 2004, p. 74, grifos do autor).
Colaborando com a discussão, Boff (1999, p. 33) afirma que “Cuidar é mais que um ato; é uma atitude. Portanto abrange mais que um momento de atenção, de zelo e desvelo. Representa uma atitude de ocupação, preocupação, de responsabilização e de envolvimento afetivo com o outro”.
Corroboro com tais posicionamentos, que veem o cuidado como uma atitude, uma disposição organísmica, a abertura ao mundo e ao outro, que envolve uma reflexão e uma atitude prática, um ser-no-mundo implicado, ativo, que entra em contato com o outro e com sua diferença. Porém, justamente partindo deste último ponto, em estudos anteriores vi como uma necessidade, gerada por práticas de nossa própria realidade, um olhar crítico sobre aquilo que mais comumente se discutia e executava como cuidado.
Toda forma de cuidado é cuidado?
Algumas dessas práticas, afirmando partir de tais ideias e atitudes de abertura às diferenças, em vez de construírem uma atitude de acolhimento à alteridade, acabavam por formar regras sobre do que se trataria o cuidado com o outro, o que deveria ser imposto e defendido com caráter rígido de verdade. No caso de recusa ou discordância do outro em relação a tal cuidado, o entendimento que se tinha era que nele se apresentava um atitude problemática, passível de punição, por revelar uma intransigência e rebeldia em relação às práticas que trariam um “bem-viver”.[1]
"...cuidar não se trata de somente defini-lo, teoricamente, como uma abertura ao mundo e ao outro, ou ainda de entendê-lo como uma atitude natural do humano que busca oferecer uma boa vida aos seus pares, sendo algo 'correto' a se fazer."
Tal atitude, muito mais do que ao cuidado, aproxima-se do conceito de violência ética (BUTLER, 2015), o qual trata de um tipo de violência que se exerce a partir da imposição de uma ética universal, que não foi construída em consonância com o mundo de vida das pessoas e suas condições, imposta como algo que trará a “boa manutenção da sociedade”. Quando as práticas de cuidado seguem por esse rumo, apontam-se as práticas violentas que enquadramentos e padronizações prévios podem gerar, direcionando os sujeitos às atitudes de submissão, negando seus direitos, excluindo-os de seus processos de formação, transformação e implicação em seus campos de vida, assim como às possibilidades de contato nutritivo com o mundo que os circunda e um consequente desenvolvimento de seus selves integrados à totalidade de suas experiências.
A partir disto, defendo como sendo algo de fundamental importância que entendamos que cuidar não se trata de somente defini-lo, teoricamente, como uma abertura ao mundo e ao outro, ou ainda de entendê-lo como uma atitude natural do humano que busca oferecer uma boa vida aos seus pares, sendo algo “correto” a se fazer. Cuidar, assim, significará necessariamente uma atitude que contribua para os contatos, para o desdobrar ativo, criativo e transformador de si e das realidades. Uma atitude que vise a emancipação e autonomia dos seres, com um consequente processo de responsabilização implicada no mundo e nas relações e que visem o processo de tomada de decisões e escolhas diante das inúmeras situações vivenciadas. Vejo que, somente assim, poderemos cuidar de si e do outro, não somente como psicólogos, mas como pessoas em relação, condição de todos nós.
REFERÊNCIAS
BOFF, Leonardo. Saber cuidar: Ética do humano – compaixão pela terra. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.
BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: Crítica da violência ética. Tradução de Rogério Bettoni. 1 ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015.
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo (6. ed.). Petrópolis: Vozes, 1997 (Original publicado em 1927).
HOLANDA, Renata. Experimentações, aprisionamentos e posicionamentos: narrativas de história de vida de pessoas que passaram por tratamento em comunidades terapêuticas. Dissertação de Mestrado (UFC), 2016. 104p.
LACLAU, ERNESTO. The making of political identities. London: Verso, 1994, p. 3.
[1] A quem interessar, faço uma discussão extensa sobre tais práticas, especificamente presente em comunidades terapêuticas, em Holanda (2016).
Renata Bessa Holanda é